Ao sair do camarim os olhares me julgavam enfurecidos e me culpavam feito um vilão de novela mexicana. Minha percepção altamente alcoolizada me deixava nas nuvens ao mesmo tempo em que caminhava ao melhor estilo de quem sofre uma labirintite crônica.
"Será triste o fim... o álcool destrói o fígado e o rim"
Aquele dia, a quebrada na zona sul de São Paulo se completava em grande festa. 15 anos de Cooperifa. Música, dança, risos, beijos, poesia e claro... cachaça!
Entre uma dose e outra a praça se coloria e se energizava... a cada artista que subia no palco o êxtase popular se derretia e se transformava em uma ode à periferia.
O coro foi puxado pela organização e correspondido em uma sonoridade glorífica.
"Uh Cooperifa meu quilombo cultural, é poesia literatura marginal"
Naquela transposição mental que me emergia me encontro dentro do camarim ao lado do Criolo, aquele que antigamente era Doido também.
"O lance não é que precisa do bar para ter sarau. Eu não acredito nisso.. é uma opinião sua.. não quero divergir da sua.. a minha verdade não é maior que a sua. Não acredito que tem sarau no bar porque lá tem bebida, acredito que tem pessoas que tem sensibilidade de perceber que aquele espaço pode ser também para um cotidiano de criação de outras relações e nisso ter outras atividade que se imaginam que vai ter quando alguém vai ao bar. Os saraus acabam acontecendo em determinados lugares porque outros lugares não são oferecido ao nosso povo e os pontos de encontro acaba sendo o lugar onde muita coisa acontece. Então o grande lance que acontece os saraus no bar não é porque tem bebida e sim porque tem pessoas.. e as pessoas enxergam que pode transformar aquilo em uma outra coisa".
Em um certo atrito continuo discordando... poeta e água não é uma dupla muito dinâmica da mesma forma que os saraus nos CEUS ou em casas de cultura não são tão "apreciados" quanto os que acontecem nos bares.. salvo o caso de presença de famosidades.
"A verdade a gente só sabe quem vive ela... e a cada segundo.. daqui a 10 segundos a realidade se transforma"
Minha mente insana só pensava em alucinógenos e então ebriamente pergunto.
O que faz mais mal a periferia.. o pó, o lança, a maconha ou o caretismo social?
"Lázaro, alguém nos ajude a entender"
Criolo se esquiva marotamente como Mohamed Ali.. retomo a pergunta.. não estou falando de A, B ou C e sim do leite e outros males que nos impõem na periferia.
"Essas coisas são reflexos de outra coisa. O fato de estarmos conversando aqui.. significa que somos seres que adquiriram determinada idade, nós não morremos ainda. Pra muita gente isso é um fato banal, mas para raiz de onde a gente vem eles colocam data pra nossa morte. Que vamos morrer de 5 anos de desnutrição, ou que vamos morrer entre os 10 ou 15 anos por causa da violência, ou que vamos ter uma morte intelectual, ou uma morte de alma porque não tem nada pra gente a não ser apertar o botão e fazer alguém rico ficar mais rico".
Aquele camarim começa a esquentar... talvez pela presença de um monte de gente que começava a me cercar.. ou pelo nítido desconforto do Criolo com essas perguntas... ou ainda podia ser somente o efeito da embriaguez.
Mesmo assim continuo nesse tema e no meu estilo constrangedor.
Qual droga faz parte do seu cotidiano.. qual você usa e tals?
"Se a gente for enunciar o número de venenos só no ar que respiramos. Eu estava fazendo uma pesquisa sobre plantas por conta da poluição, comecei a me assustar com o tanto de nomes de venenos que existem no ar. Isso já é bem louco irmão! Tem tipos de plantas que são indicadas para cozinha e banheiro. Porque determinados produtos de limpeza deixam sua casa limpa, com cheiro bom... mas tem amônia que é um veneno cancerígeno desesperador. O ar que nós respiramos é desesperador, a água que a gente bebe, que tem cloro, é desesperador".
Ainda insisto o deixando ainda mais incomodado.
Mas não tem um vício sobre nada? TV? Ivete Sangalo? Algum tipo de alimento?
"Meu filho, a gente come o que pode, a gente é pobre... não dá pra escolher. Aí depois de muita luta a gente vai entendendo as relações das coisas, o que se pode fazer, o que se pode trazer pra você e pra sua família e as suas condições pra transformar isso em realidade, de transformar alguns costumes que a situação te impõem. Todo mundo fala que toda criança merece uma alimentação balanceada, todo ser humano merece uma alimentação balanceada. Mas eu sei quantos natais eu e meu pai passamos só com caldo de feijão e fubá cru.
"A angústia. O ambiente que se cria para que nosso povo fique em depressão. O ambiente que se cria para que tire do nosso povo o brilho do olhar. Para que tire do nosso povo a vontade de viver... isso ai meu irmão, não tá catalogado em nenhum lugar e talvez seja a droga mais pesada que ofereçam ao nosso povo."
Saio fuzilado e feliz, na melhor homenagem a Vicente Celestino. Pronto para mais uma breja e curtir o show do Criolo que estava por vir.